Psicoterapia e Educação Somática

Políticas do Corpo: O Bem Viver como cosmologia relacional
O Bem Viver como cosmologia relacional
O “Bem Viver” (Sumak Kawsay, em quíchua; Suma Qamaña, em aimará) não é uma utopia futura, nem um modelo econômico alternativo; é uma forma de habitar o mundo. Nas cosmologias originárias da América do Sul, a vida é tecida em interdependência radical entre humanos, animais, plantas, águas, montanhas e espíritos. Tudo está vivo — e tudo comunica. A Terra não é um recurso, mas um corpo sensível, uma Mãe que sente e reage.
O ser humano, nessa visão, não é o centro, mas um nó na teia da vida. O Bem Viver é, portanto, o modo de viver em harmonia com o ciclo da reciprocidade — onde dar, receber e devolver são gestos que mantêm o cosmos em equilíbrio.
“Tudo está vivo e tudo sente; viver bem é viver em boa relação.”
A crítica implícita ao “desenvolvimento”
O Bem Viver é também uma crítica silenciosa, porém radical, ao mito do progresso. O desenvolvimento, na lógica moderna, implica crescimento, acumulação e domínio da natureza. Já o Bem Viver propõe equilíbrio, suficiência e comunhão.
Não se trata de viver “melhor que os outros”, mas de viver bem com os outros — humanos e não humanos. Em vez de uma linearidade evolutiva, propõe-se um tempo circular, rítmico, em sintonia com as estações, os rituais e os ciclos da terra. Essa concepção rompe com o paradigma do indivíduo autônomo, racional e produtivo — e reconecta o viver ao ritmo do corpo e da natureza, algo que a Integração Organísmica também busca restituir no campo terapêutico e existencial.
Corpo, terra e pulsação
Para Wilhelm Reich, a saúde de um organismo se mede por sua capacidade de pulsar — expandir e contrair em harmonia com o ambiente. Os povos originários vivem exatamente nessa lógica pulsátil, sem couraça, em escuta constante da terra e de suas variações. O Bem Viver pode ser visto como uma sabedoria orgânica, uma inteligência do campo vital: a vida comunitária, a alimentação, a espiritualidade e os rituais são expressões de um corpo coletivo que respira junto com o cosmos.
Essa sabedoria é profundamente somática: o corpo não é um instrumento, mas uma expressão da terra viva. A doença, nesse contexto, não é apenas biológica — é um desequilíbrio entre o humano e o território, entre o corpo e o cosmos.
O Bem Viver como dobra da imanência
Se retomamos Deleuze, poderíamos dizer que o Bem Viver é uma forma de dobra comunitária da imanência: o fora (a natureza, o cosmos) dobra-se em modos de vida humanos e coletivos, sem perder o contato com o fora que os gera. Não há separação entre o espiritual e o material, o sagrado e o cotidiano: o Bem Viver é a imanência vivida como ética e estética da existência.
Enquanto a modernidade dobra o mundo em sistemas de controle, o Bem Viver dobra o mundo em relação, em reciprocidade e cuidado. É uma dobra não egocentrada, mas eco-centrada — a subjetividade não é uma identidade, mas uma rede de pertencimentos.
Maturana, a biologia do amor e o Bem Viver
Humberto Maturana dizia que “a biologia do amor é a base da existência social”. Os povos originários encarnam essa biologia: a convivência se dá a partir de gestos de cuidado e colaboração, não de competição. O amor, entendido como aceitação do outro em sua presença, é o fundamento biológico da cultura. O Bem Viver é, portanto, a expressão comunitária dessa biologia do amor, vivida como princípio ecológico e espiritual.
O que Maturana chama de acoplamento estrutural entre ser vivo e meio ambiente, as cosmologias ameríndias vivem como reciprocidade entre humano e natureza — não há sujeito e objeto, apenas corpos em relação.
O Bem Viver e a Integração Organísmica
Na Integração Organísmica (IO), o Bem Viver pode ser compreendido como o estado de ressonância plena entre corpo, ambiente e comunidade. É o corpo que vive em sintonia com o campo — não isolado, mas co-regulado pela presença dos outros e pela pulsação da vida.
O Bem Viver é um estado de campo: um corpo que sente o ritmo do dia e da noite, da respiração e do silêncio; uma comunidade que escuta antes de agir; um saber que nasce da experiência, e não da abstração. A IO, ao propor uma clínica da ressonância e da escuta somática, se aproxima dessa sabedoria ancestral: ambas se fundam em uma epistemologia da relação viva — não há “cura”, há re-habitação do corpo no mundo.
Síntese: o Bem Viver como modo de Ser
O Bem Viver não é uma doutrina nem uma técnica: é uma sabedoria de presença. Ele nos convida a reconectar o corpo e a Terra, o eu e o coletivo, a consciência e o cosmos. Em termos filosóficos, é uma ética da imanência, uma ecologia da alma e uma estética da existência compartilhada.
“Viver bem é viver em boa relação com o sopro que anima todas as coisas.”
No contexto atual — de crise ambiental, exaustão psíquica e desenraizamento — o Bem Viver ressurge como contra-imagem civilizatória: um chamado para reencantar o mundo e re-habitar o corpo como parte viva do planeta.
