Vegetoterapia Caracteroanalítica: Linhagem, Princípios e Desdobramentos Clínicos
- Luis Blanco
- 5 de abr.
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A Vegetoterapia Caracteroanalítica emerge como desdobramento clínico essencial do pensamento de Wilhelm Reich, especialmente a partir de 1935, com a publicação do texto “A linguagem expressiva do vivo”. Nesse momento, Reich desloca o foco da escuta exclusivamente verbal do inconsciente para uma escuta ampliada, que inclui a linguagem viva do corpo. Essa escuta já vinha sendo anunciada anteriormente, como no texto apresentado em 1934, no Congresso de Lucerna, intitulado “Contato psíquico e correntes vegetativas”, onde Reich introduz o conceito de contato — um dos mais potentes e duradouros de sua obra — como eixo clínico para compreender as neuroses.

Reich não abandona a matriz analítica: mantém a noção de inconsciente, a teoria das pulsões e o conceito de formação do caráter. Porém, ele os atravessa por uma nova via de leitura: a observação direta do corpo e das experiências relatadas pelos pacientes em sessões clínicas. Esses pacientes falam de sensações internas que Reich chamará de correntes vegetativas ou protoplasmáticas — fluxos que atravessam o corpo e que se expressam por meio de contrações e relaxamentos musculares, tremores, calor, frio, e uma miríade de manifestações somáticas espontâneas.
Ao perceber esses fenômenos, Reich faz uma conexão inédita: a relação entre as pulsões e o sistema nervoso vegetativo. O sistema autônomo passa a ser entendido como mediador direto do prazer e do desprazer — da expansão e da contração do organismo. Surge aí a ideia revolucionária de que a pulsão é também pulsação, um movimento rítmico de dentro para fora e de fora para dentro, observável clinicamente e possível de ser modulado na relação terapêutica. Essa modulação é a base da Vegetoterapia Caracteroanalítica.
Reich desenvolve uma cartografia do corpo em sete segmentos de couraça muscular, que correspondem a zonas de tensão crônica, cada uma relacionada a funções expressivas e afetivas específicas. A liberação progressiva desses segmentos pode gerar a emergência do que Reich chamou de “reflexo do orgasmo”, um movimento ondulante que ele associou à motricidade de organismos simples, como os anelídeos — numa hipótese de regressão filogenética da pulsação vital.
Esse sistema de sete segmentos pode ser compreendido como um código do corpo, onde se inscrevem as experiências emocionais, os modos de defesa e a história relacional do sujeito. O corpo se torna então um campo clínico de escuta, leitura e atuação, inaugurando um novo paradigma na psicoterapia: o corpo na psicanálise, não como representação simbólica, mas como território pulsátil e expressivo do inconsciente vivo.
Linhagens da Vegetoterapia e o Papel de Ola Raknes
Após a ruptura com a psicanálise e o exílio, Reich continua seu trabalho na Noruega e depois nos Estados Unidos, onde passa a utilizar o termo orgonoterapia, em referência à sua descoberta do “orgônio cósmico”. Nesse período, um dos principais colaboradores e continuadores de sua abordagem foi Ola Raknes, psicólogo e filólogo norueguês, que teve papel decisivo na transmissão da vegetoterapia na Europa e que formou importantes terapeutas.
Raknes foi terapeuta e mentor de David Boadella, que mais tarde desenvolveria a Biossíntese, e de Gerda Boyesen, fundadora da massagem biodinâmica e do conceito de “psicoperistaltismo”, integrando corpo e psique por meio do toque suave e da escuta abdominal. Ainda nos anos 1970, Raknes torna-se amigo e mentor de Federico Navarro, médico, psicanalista e neuropsicólogo italiano, que foi convidado por Raknes a desenvolver uma metodologia sistematizada da vegetoterapia.
Federico Navarro e a Vegetoterapia de Fase ou de Nível
Navarro realiza uma importante sistematização da Vegetoterapia Caracteroanalítica, introduzindo o uso clínico dos actings, que são ativações psicocorporais inspiradas em movimentos espontâneos dos bebês e crianças em suas etapas de desenvolvimento. Essas ativações são feitas com o paciente deitado no divã, com as pernas dobradas, e visam promover uma regulação do sistema vegetativo e da energia vital.
A prática dos actings é guiada pela escuta da pulsação (o movimento interno que gera emoção e expressão) e da onda, que é o movimento longitudinal descendente, atravessando o corpo da cabeça à pelve. Reich já havia distinguido esses dois movimentos, mas Navarro os toma como critérios clínicos: pulso e onda são sinais de integração e de desbloqueio energético.
Para Navarro, o objetivo da vegetoterapia é alcançar a maturidade do caráter, na medida do possível. E por maturidade ele compreende a genitalidade funcional — a capacidade de viver a sexualidade com entrega, espontaneidade e presença, possibilitando o reflexo do orgasmo como expressão de um corpo integrado. Assim, o reflexo do orgasmo torna-se não apenas um fenômeno sexual, mas um movimento de integração corpo-mente, em que o paciente sente-se inteiro, atravessado por um eixo energético e presente no campo gravitacional.
Cada segmento (ou “nível”, como Navarro nomeia) é associado a determinadas patologias e fases do desenvolvimento libidinal. Quanto mais precoce o “stress” vivido pela criança — termo que Navarro adota para eventos traumáticos e desorganizadores — mais grave tende a ser a organização patológica resultante. Essa caracterologia ainda se mantém vinculada à matriz freudiana do desenvolvimento da libido (oral, anal, fálica, etc.), e por isso Navarro chama sua abordagem de “vegetoterapia de fase” ou “de nível”.
Um ponto fundamental na prática clínica de Navarro é o momento que sucede os actings, quando o paciente é convidado a nomear as sensações vividas e os conteúdos que emergiram à mente. Assim, corpo e palavra se articulam de forma integrada, sem que uma tenha primazia sobre a outra.
Navarro viveu no Brasil durante os anos 1980 e 1990, formando terapeutas e difundindo sua leitura clínica da vegetoterapia em diálogo com a cultura latino-americana. Tive a oportunidade de conhecê-lo pessoalmente em um congresso de somatoterapia em Montevidéu, em 1990, onde ambos fomos palestrantes. A partir desse encontro, participei de vários de seus grupos e formações. Navarro mantinha uma postura clínica severa, fiel aos princípios que elaborara. Diferentemente de José Ângelo Gaiarsa, de quem também fui aluno, Navarro não admitia outras abordagens clínicas, sendo muitas vezes crítico e intransigente em relação a qualquer hibridização da vegetoterapia.
Conclusão: A Vegetoterapia como Fundamento Vivo da Clínica Corporal
A Vegetoterapia Caracteroanalítica permanece como uma das maiores heranças clínicas de Wilhelm Reich. Ela inaugura uma forma de clínica onde o corpo é escutado como sujeito, onde o movimento, a tensão e o ritmo revelam dimensões do inconsciente não captadas pela linguagem simbólica.
Ao longo do tempo, a vegetoterapia deu origem a diversas linhagens: algumas seguiram fielmente os princípios reichianos; outras, como as abordagens “neo-reichianas”, hibridizaram métodos e conceitos. No entanto, o núcleo central da vegetoterapia — a escuta da pulsação viva do corpo, a leitura dos segmentos e a modulação do contato — permanece como uma contribuição insubstituível à psicoterapia do século XXI.
Na Integração Organísmica, essa herança é retomada e ampliada, inserida numa perspectiva epistemológica mais aberta, interligando a clínica corporal, a filosofia, a arte e os saberes da experiência viva. Aqui, o corpo não é apenas analisado, mas vivido — como campo de intensidades, afetações, integrações e abertura ao desejo.
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