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Reich e a Potência Orgástica

  • 6 de abr.
  • 3 min de leitura

A descoberta clínica das correntes vegetativas marca um ponto de virada na obra de Wilhelm Reich. Quando a rigidez da couraça muscular se dissolve, quando os anéis de tensão crônica começam a se abrandar, o corpo desperta. E o que pulsa de dentro não é apenas sensação — é vida em fluxo. São correntes doces, vibrantes, difusas, que percorrem o organismo como um rio interno de prazer e derretimento. Reich chamou essas sensações de correntes plasmáticas, protoplasmáticas, vegetativas, ou ainda orgonóticas — percepções íntimas do próprio campo vital.






Para Reich, essas correntes não são apenas efeitos colaterais de uma liberação muscular; elas revelam a base viva e pulsátil da existência. O corpo vivo, mesmo em sua expressão unicelular, já é dotado de motilidade, de uma sabedoria vegetativa que antecede o comando do cérebro. A pulsação — contração e expansão — é anterior à mente, anterior à vontade. É o próprio organismo em sua sabedoria primária, rítmica, cósmica.


Na clínica, Reich percebeu que essa motilidade vital estava adormecida. Não apenas bloqueada, mas amortecida pela cultura, pela moral, pela estrutura social autoritária. A repressão dos impulsos espontâneos — a respiração livre, o prazer do corpo, a curiosidade orgânica — constrói uma couraça: uma estrutura crônica de tensão que se fixa no corpo e molda a personalidade. Ao invés da entrega viva à pulsação, surgem comportamentos controlados, o medo, a perversão, a submissão. A personalidade se divide: uma camada superficial adaptada e normativa, uma camada secundária carregada de angústia e agressividade reprimida, e no fundo, o núcleo vivo — a camada de espontaneidade, de erotismo puro, de potência.


É nesse núcleo que vive o que Reich chamou de potência orgástica. Mas não se trata aqui de orgasmo como clímax genital ou de uma função sexual isolada. A potência orgástica, para Reich, é a capacidade de um organismo se entregar completamente à sua pulsação vital, sem defesas, sem contenção, sem retração. É uma capacidade de dissolução do eu rígido, uma entrega à vida como fluxo. O "eu" aqui não é eliminado, mas se desfaz em sua rigidez, em sua forma defensiva e separada. A identidade se torna pulsante, permeável, conectada com o todo vivo.


Essa entrega não é apenas sexual. É estética, espiritual, somática. É o êxtase silencioso de um corpo que volta a confiar em si mesmo, que reencontra seu ritmo interno, sua respiração ampla, sua vibração. É a alegria sem objeto, o prazer do ser-em-si. É a experiência de estar em casa no próprio corpo, de sentir a vida atravessando-o sem resistência. É o corpo que sente — e não o ego que controla — que se torna centro de percepção e de mundo.


Reich viu na perda dessa potência uma chave para compreender não apenas a neurose individual, mas a estrutura autoritária da sociedade. O medo do prazer, o medo da entrega, o medo da dissolução do eu, são os alicerces inconscientes de sistemas que domesticam o desejo e fabricam subjetividades submissas. A couraça é, ao mesmo tempo, biológica e política.


Recuperar a potência orgástica é, portanto, um gesto radical. Não é regressão, mas criação. É abrir-se novamente ao que pulsa, ao que flui, ao que vive sem ser reduzido à utilidade, ao desempenho, à obediência. É resistir, com o corpo vivo, ao adormecimento das forças primárias do ser.


Reich nos convida, por fim, não a retornar a um paraíso perdido, mas a reabrir o corpo ao presente vivo. A confiar no fluxo. A dissolver o eu que defende e controla para nascer de novo no prazer da própria pulsação.

 
 
 

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